Sócios

sábado, 25 de junho de 2011

Dezoito e trinta, dezenove e cinco


Sábado à noite. Dezoito e trinta.
Escuro já.
O sino toca.
– Por que o sino toca essa hora? Pensa.
Meados de junho e o frio terrível toma conta do ambiente.
O cheiro de lenha queimada e a fumaça saindo das chaminés e fogões, mostra a luta contra o inverno.

Dezoito e trinta e cinco.
Sentado na varanda, o mate cevado, a térmica cheia, o pinhão cozinha na panela sobre o fogão à lenha.
Sozinho, observa alguns corajosos caminhando na rua molhada pela garoa, que mais parece gelo derretido caindo do céu.

Dezoito e quarenta.
Mais uma puxada na bomba, um chiado na cuia, enche-a novamente e continua a olhar a leve movimentação de carros. Algumas pessoas saindo de casa, outras caminhando com cuidado pelo calçamento irregular e molhado. A garoa aumenta. Uma criança chora.
A movimentação parece aumentar, pessoas encasacadas, lã, couro, guarda-chuva. Uma buzinada, um levantar de mão. Cumprimento.

Dezoito e quarenta e cinco.
O sino bate novamente, cães uivam incomodados com o som irritante.
– Boa noite! Diz alguém que passa.
– Boa noite! Responde.
– Aconteceu alguma coisa. Todos subindo essa hora. Pensa.
Atitudes incomuns da comunidade de pouco mais de cinco mil pessoas.
– Boa noite vizinho! Diz mais alguém que sobe.
– Boa noite!
Um casal sobe também com os filhos pouco agasalhados com roupas rústicas e simples.
A garoa parece ter acalmado, a brisa leva as gotículas de volta para cima, como quem não querendo deixá-las cair ao chão.

Dezoito e cinquenta.
Dois carros ao se cruzar param e ouve-se a conversa:
– Opa!
– Oh vizinho!
– Ficou sabendo?
– Pois é, coisa triste!
A cuia chia mais uma vez, enche-a novamente apertando de leve a térmica, os ouvidos concentrados na conversa que se passa.
– Você vai?
– Vou pegar a mulher e as crianças e subo!
– Até mais então!
– Até!
Os carros seguem caminho.

Dezoito e cinquenta e cinco.
A cuia chia novamente, ao enchê-la, a térmica também grita anunciando que a água terminou.
O frio cada vez mais intenso faz o corpo querer abandonar a varanda e entrar.
Aquela conversa, as pessoas subindo, a criança chorando, o sino.
– Alguém morreu. Pensa.
Um vizinho que subia, para em frente à varanda:
– Boa noite vizinho!
– Boa noite! Responde.
– Vai subir também?
– Pois é, não estou me sentindo bem, acho que fico. Você vai?
– Tenho que ir né? Era parente!
– Mas foi de que?
– Câncer, lembra?
– Ah! Sim, lembro. Coitado! Vai descansar agora.
– Vai sim. Conclui subindo lentamente como querendo não chegar ao destino.


Dezenove em ponto.
O sino bate e os cães uivam novamente, já irritados com o
timbre da batida no bronze.
– Foi morte mesmo! Era visto! Pensa. Só duas coisas tirariam essas pessoas de casa nas condições de hoje. Uma é baile e a outra é velório.
– Coisa triste! Resmunga.
Suga o último gole do mate, recolhe a térmica, entra, dá uma olhada na panela que esta no fogão à lenha, morde a bunda de um pinhão na tentativa de arrancá-lo da casca.
– Esta cru! Fala consigo mesmo.
Põe o gato pra fora.
Fecha a porta.

Dezenove e cinco.
Texto e Imagens: Kleber J G Martins

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os degraus da verdade

Pela primeira vez aqui na Sociedade dos Poetas Mortos a publicação de um conto. A autoria? não, não é minha. É do autor Paulo Valença, natural de João Pessoa/PB, autor de livros de contos e romances, com premiações nacionais, verbete em dicionários biobibliográficos de escritores contemporâneos, pertencente a várias instituições e sites literários. Atualmente residente em Recife/PE. Eu e Paulo somos colegas de publicações no Portal Literal - http://portalliteral.terra.com.br/ e claro que com as devidas autorizações a mim concedidas por ele, segue abaixo o texto que considero uma verdadeira obra de arte. O conto nos mostra um pouco da realidade e do cotidiano de algumas pessoas, residentes provavelmente em um local pobre, onde vivem pessoas da classe trabalhadora e que retrata o modo de vida simples do lugar. Ao ler o caso desejei no mesmo momento compartilha-lo com os amigos seguidores.
A Paulo Valença, desejo sucesso e meu sincero pedido para que continue com os trabalhos literários.
Kleber J G Martins

Os degraus da verdade
1

A escadaria. Estreita. Longa.
Josué sobe-a. Devagar. Cabisbaixo.
As residências nas laterais. Conjugadas, de porta e janela, sem varandas. Casas de pobres, com vozes que falam alto, como se em discussão:
- Eu não lhe avisei? Você é muito otário!
- Vai te lascar!
Ele sorri. O meio, a pobreza faz as criaturas “explodirem” por um nada. O stress é natural. Sobe.
O poste adiante, de luz fraca, como um olho cansado da noite que amadurece. Será que Lurdes ainda está acordada, esperando-o? Provavelmente.
- Só sossego o coração depois que você chega.
O sorriso dele, de compreensão. Comovido se achega e debruçando-se, beija-lhe a face morena.
- Vai jantar agora?
- Primeiro, vou tomar o banho.
Retorna a posição normal e encaminha-se ao banheiro, onde atrás da porta, já estão às sandálias e a bermuda esperando-o.
Despindo-se, abre o chuveiro, enquanto ouve a zoada da cadeira de rodas com a mulher na cozinha, que chega para esquentar a comida. Tudo numa rotina. Até quando assim? Mas...
- Josué vai demorar ainda?
- Nada, tou acabando.
- Certo.
Ah, Lurdes, quanto lhe quer bem! Seu mal que a deixou assim sem caminhar, de pernas e dedos duros não lhe afetou o bem-querer, pelo contrário: aumentou a amizade que atravessa o tempo, os faz envelhecerem unidos...
Fecha o chuveiro. Enxágua-se. Calça as sandálias, veste a bermuda e abre a porta.
- Tá tudo quentinho.
- Sim.
Então, abrindo o armário, ele retira o prato, os talheres, a xícara com o pires e após se servir da refeição, senta-se à mesa, na salinha conjugada.
- Depois de comer, você deixe o prato e os talheres na pia.
A cadeira de rodas passa devagar, conduzida pelas mãos de dedos recurvos, sem articulação, sobre os braços, no esforço de jogar o tronco à frente.
Tudo numa repetição...
A casa no alto do morro. O murinho, com o portão ao centro. O terraço pequeno. A luz acesa. A sala e a cadeira com a mulher, defronte à televisão.
Empurra o portão, entrando.
De uma residência próxima, vêm os latidos do cachorro, à semelhança das noites anteriores.
- Animal antipático da peste!
Cruza o terraço e estranha o rosto imóvel da mulher, que na sala, não se volta para recebê-lo.
- Lurdes tudo bem?
O silêncio como resposta.
- Lurdes?
Grita nervoso, entendendo.
Na fisionomia parada há o sorriso, o último como a despedida de tudo.
Impulsionado pela força da verdade, Josué então envolve com os braços trêmulos, os ombros caídos da esposa, enquanto na televisão, o apresentador gargalha, animando o auditório feminino.

2

Madrugada.
Valdomiro sobe a escadaria.
O silêncio reina nas casas às laterais, o que, aliás, ele estranha, pois por aqui, nesse morro há sempre uma voz e o som de rádio quebrando a placidez das horas avançadas.
- Ah, se sempre fosse assim!
Sobe os degraus. Um dia se libertará dessa subida e também descida diária? Anos assim. E... A realidade cruel: desempregado!
Após o serão, ao “bater” o cartão, Zé-Rodrigues, atrás do birô, lhe avisou:
- Mais tarde venha falar com o Cláudio, do Setor-pessoal.
Entendeu. E nada disse. Repôs o cartão no quadro e deixou a Portaria.
- Desempregado.
Maduro, com a mulher, dois filhos ainda pequenos, a despesa da casa... Por que assim de repente? Entretanto, quem trabalha em indústria particular deve se conformar, ou melhor, se adaptar aos imprevistos. Como dizer a Mariana que está “no olho da rua”, que...
Vence os degraus estreitos, como se indo ao encontro do abismo da angústia de horas difíceis que terá de encarar. Logo agora com o retorno da inflação, aliás, essa foi quem a motivou... Mas, nada de desespero, seu Valdomiro. O amanhã lhe será diferente. Para tudo nessa vida há uma solução. Sim, pensamento positivo.
Respira fundo e continua a subida.
À direita a casa de terraço, a porta e janela fechados, com o muro defronte e o portão ao centro...
Após a morte de D. Lurdes, Seu Josué fechou-a e se mudou, para outro bairro. Dizem que ele agora está morando no “Alto do Capitão”.
Passa. O silêncio da residência às escuras. Como uma interrogação angustiante à madrugada. Mas assim é tudo nesse mundo. Com o início e o fim. Tudo é transitório. É a lei natural de tudo.
- Tudo!
Apressa-se, como se de repente temesse algo, a surpresa de...
Ah, tem de se conter. Mais do que nunca ser forte. Ser otimista!
A salinha de luz acesa. A acolhida querida e, mais uma vez respirando com força, se achega. Aí retira a chave do bolso da calça e abre a porta.
- Valdomiro?
- Sim, sou eu, Mariana.
Fecha a porta e encaminha-se à cozinha, onde a mulher está.
- Você hoje demorou demais! Algum problema na fábrica?
Para que lhe dizer agora o que lhe sucedeu? Com jeito, depois lhe dirá tudo, sim, lhe revelará.
- Não, tudo bem.
- Preparei aquele guisadinho que você tanto gosta.
- Ótimo!
Então a abraça. Carinhoso. Protetor.
De uma residência vizinha o cão late.
- Esse bicho late até de madrugada!
- É cachorro de pobre, Valdomiro. Deve tá com fome.
Sorriem. E se apertam, integrados à mesma compreensão.
Paulo Valença

domingo, 12 de junho de 2011

Pode ser que sim

Noite fria, gelada é inverno no sul
Solidão ao som de So far away
Penso em dizer mas, I can’t say
nem mais um clique no menu

Penso em dormir mais cedo
Vejo sua fotografia
A ficção de mais um dia
Acho que estou delirando

Pode ser que sim, delirar
Com um rosto desenhado
Cabelos cacheados
Sobrancelhas, boca, olhar

Me olho longo tempo no espelho
minha barba grande e terrível
Me faz pensar que perdi o nível
Preciso sim de você, um conselho

Kleber J G Martins

sexta-feira, 3 de junho de 2011

Da sacada

Da sacada, longe, olho o rio e a estrada
olho o horizonte, tentando ver o além
como alguém que olha para o nada

Da sacada, perto, olho a rua e a calçada
olho a chuva descendo, a enxurrada
também os galhos judiados pela invernada

Da sacada, olho tudo e não vejo nada
olho o dia passar e o inverno chegar
a neblina das manhãs e a vida maltratada

Da sacada, faço uma arquibancada
olho curioso, como quem não quer nada
a loira que passa e a morena, que graça

Na sacada, a loira que passa me olha
e a morena, essa nem na sacada...

Kleber J G Martins