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quinta-feira, 23 de junho de 2011

Os degraus da verdade

Pela primeira vez aqui na Sociedade dos Poetas Mortos a publicação de um conto. A autoria? não, não é minha. É do autor Paulo Valença, natural de João Pessoa/PB, autor de livros de contos e romances, com premiações nacionais, verbete em dicionários biobibliográficos de escritores contemporâneos, pertencente a várias instituições e sites literários. Atualmente residente em Recife/PE. Eu e Paulo somos colegas de publicações no Portal Literal - http://portalliteral.terra.com.br/ e claro que com as devidas autorizações a mim concedidas por ele, segue abaixo o texto que considero uma verdadeira obra de arte. O conto nos mostra um pouco da realidade e do cotidiano de algumas pessoas, residentes provavelmente em um local pobre, onde vivem pessoas da classe trabalhadora e que retrata o modo de vida simples do lugar. Ao ler o caso desejei no mesmo momento compartilha-lo com os amigos seguidores.
A Paulo Valença, desejo sucesso e meu sincero pedido para que continue com os trabalhos literários.
Kleber J G Martins

Os degraus da verdade
1

A escadaria. Estreita. Longa.
Josué sobe-a. Devagar. Cabisbaixo.
As residências nas laterais. Conjugadas, de porta e janela, sem varandas. Casas de pobres, com vozes que falam alto, como se em discussão:
- Eu não lhe avisei? Você é muito otário!
- Vai te lascar!
Ele sorri. O meio, a pobreza faz as criaturas “explodirem” por um nada. O stress é natural. Sobe.
O poste adiante, de luz fraca, como um olho cansado da noite que amadurece. Será que Lurdes ainda está acordada, esperando-o? Provavelmente.
- Só sossego o coração depois que você chega.
O sorriso dele, de compreensão. Comovido se achega e debruçando-se, beija-lhe a face morena.
- Vai jantar agora?
- Primeiro, vou tomar o banho.
Retorna a posição normal e encaminha-se ao banheiro, onde atrás da porta, já estão às sandálias e a bermuda esperando-o.
Despindo-se, abre o chuveiro, enquanto ouve a zoada da cadeira de rodas com a mulher na cozinha, que chega para esquentar a comida. Tudo numa rotina. Até quando assim? Mas...
- Josué vai demorar ainda?
- Nada, tou acabando.
- Certo.
Ah, Lurdes, quanto lhe quer bem! Seu mal que a deixou assim sem caminhar, de pernas e dedos duros não lhe afetou o bem-querer, pelo contrário: aumentou a amizade que atravessa o tempo, os faz envelhecerem unidos...
Fecha o chuveiro. Enxágua-se. Calça as sandálias, veste a bermuda e abre a porta.
- Tá tudo quentinho.
- Sim.
Então, abrindo o armário, ele retira o prato, os talheres, a xícara com o pires e após se servir da refeição, senta-se à mesa, na salinha conjugada.
- Depois de comer, você deixe o prato e os talheres na pia.
A cadeira de rodas passa devagar, conduzida pelas mãos de dedos recurvos, sem articulação, sobre os braços, no esforço de jogar o tronco à frente.
Tudo numa repetição...
A casa no alto do morro. O murinho, com o portão ao centro. O terraço pequeno. A luz acesa. A sala e a cadeira com a mulher, defronte à televisão.
Empurra o portão, entrando.
De uma residência próxima, vêm os latidos do cachorro, à semelhança das noites anteriores.
- Animal antipático da peste!
Cruza o terraço e estranha o rosto imóvel da mulher, que na sala, não se volta para recebê-lo.
- Lurdes tudo bem?
O silêncio como resposta.
- Lurdes?
Grita nervoso, entendendo.
Na fisionomia parada há o sorriso, o último como a despedida de tudo.
Impulsionado pela força da verdade, Josué então envolve com os braços trêmulos, os ombros caídos da esposa, enquanto na televisão, o apresentador gargalha, animando o auditório feminino.

2

Madrugada.
Valdomiro sobe a escadaria.
O silêncio reina nas casas às laterais, o que, aliás, ele estranha, pois por aqui, nesse morro há sempre uma voz e o som de rádio quebrando a placidez das horas avançadas.
- Ah, se sempre fosse assim!
Sobe os degraus. Um dia se libertará dessa subida e também descida diária? Anos assim. E... A realidade cruel: desempregado!
Após o serão, ao “bater” o cartão, Zé-Rodrigues, atrás do birô, lhe avisou:
- Mais tarde venha falar com o Cláudio, do Setor-pessoal.
Entendeu. E nada disse. Repôs o cartão no quadro e deixou a Portaria.
- Desempregado.
Maduro, com a mulher, dois filhos ainda pequenos, a despesa da casa... Por que assim de repente? Entretanto, quem trabalha em indústria particular deve se conformar, ou melhor, se adaptar aos imprevistos. Como dizer a Mariana que está “no olho da rua”, que...
Vence os degraus estreitos, como se indo ao encontro do abismo da angústia de horas difíceis que terá de encarar. Logo agora com o retorno da inflação, aliás, essa foi quem a motivou... Mas, nada de desespero, seu Valdomiro. O amanhã lhe será diferente. Para tudo nessa vida há uma solução. Sim, pensamento positivo.
Respira fundo e continua a subida.
À direita a casa de terraço, a porta e janela fechados, com o muro defronte e o portão ao centro...
Após a morte de D. Lurdes, Seu Josué fechou-a e se mudou, para outro bairro. Dizem que ele agora está morando no “Alto do Capitão”.
Passa. O silêncio da residência às escuras. Como uma interrogação angustiante à madrugada. Mas assim é tudo nesse mundo. Com o início e o fim. Tudo é transitório. É a lei natural de tudo.
- Tudo!
Apressa-se, como se de repente temesse algo, a surpresa de...
Ah, tem de se conter. Mais do que nunca ser forte. Ser otimista!
A salinha de luz acesa. A acolhida querida e, mais uma vez respirando com força, se achega. Aí retira a chave do bolso da calça e abre a porta.
- Valdomiro?
- Sim, sou eu, Mariana.
Fecha a porta e encaminha-se à cozinha, onde a mulher está.
- Você hoje demorou demais! Algum problema na fábrica?
Para que lhe dizer agora o que lhe sucedeu? Com jeito, depois lhe dirá tudo, sim, lhe revelará.
- Não, tudo bem.
- Preparei aquele guisadinho que você tanto gosta.
- Ótimo!
Então a abraça. Carinhoso. Protetor.
De uma residência vizinha o cão late.
- Esse bicho late até de madrugada!
- É cachorro de pobre, Valdomiro. Deve tá com fome.
Sorriem. E se apertam, integrados à mesma compreensão.
Paulo Valença

6 comentários:

  1. Querido amigo,olha eu aqui matando saudades sua e deste espaço maravilhoso.Obrigado por partilhar um post tão belo.Só poderia ser você mesmo a nos proporcionar tal leitura.Bjus poeta.

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  2. Oi minha querida!!! saudades... brigadão pela visita!!! o texto é muito bom sim e é de um autor aí da tua terra! Paulo Valença... kkk bjos

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  3. Ótimo conto esse de Paulo Valença. Um modo comovente de narrar o cotidiano.

    Bom final de semana, Kleber!

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  4. É verdade Rosa, agradeço a sua participação, ele é um ótimo escritor, tenho acompanhado alguns de seus trabalhos. você também pode conferir no Portal Literal - http://portalliteral.terra.com.br/perfis/paulo-valenca
    Bjos
    Kleber J G Martins

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  5. Muito bons os contos. Gostei muito do primeiro, principalmente. Ainda bem que a internet democratiza o acesso à literatura (claro que nem tudo é bom, mas sabendo procurar, sempre se encontra coisas boas). Esse é o caso. Mais um escritor com futuro brilhante pela frente, creio.

    Bjos poeta!

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  6. Oi Rose minha flor... é verdade, tava com saudade das tuas participações aqui. Sempre se encontra coisas boas perdidas nesse mundo virtual... kkkk bjos
    Kleber J G Martins

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